Luís Palma



Escuro, o sol negro da melancolia.

Escuro, o sol negro da melancolia.

Marc Lenot

Alguns serão capazes de descrever melhor do que eu a euforia dos jovens portugueses após a Revolução de Abril e contar as emoções vividas na altura: o desejo de novidade, a ansiedade de viajar, a abertura a um mundo de que desconheciam e que as artes, a literatura, o cinema, a política, as viagens lhes davam agora a conhecer. Após quarenta e oito anos de um regime político marcado pelo ideal do “orgulhosamente sós”, os portugueses tornavam-se finalmente cidadãos do mundo. O fim do isolamento passava também pela possibilidade de o fotógrafo viajar até Nova Iorque, Toronto ou Londres, e captar imagens agridoces de uma modernidade finalmente acessível. O fim do Estado Novo deu origem a um estilo de vida alheio a preconceitos e a uma moral autoritária.
Até à data, de Luís Palma eu conhecia apenas o seu trabalho sobre territórios, no qual o artista perseguia as desigualdades, as falhas e os paradoxos, procurando os sinais geopolíticos e históricos inscritos nas paisagens. Nesses trabalhos, ao mesmo tempo que demonstrava o seu empenho, Palma mantinha uma certa distância. A presente série mostra um aspecto mais íntimo, mais pessoal e discreto, do seu percurso, da sua "maioridade" pós-25 de Abril. Essa exploração, ora alegre, ora melancólica, traduz-se em termos visuais por imagens mais sombrias, mais apertadas e mais tensas.
Para uma geração, foi na música que a liberdade ganhou forma. É o que nos mostra o conjunto de imagens mais antigas desta série, captadas nos bastidores de um concerto da banda The Clash em Madrid, em 1981 (Palma tinha então 21 anos). Uma dessas fotografias evoca o imaginário de Eva, despida, com uma maçã numa das mãos, a euforia musical e rebelde associada ao álcool, às drogas e ao sexo; numa cidade, também ela fustigada, durante quarenta anos, pelo regime franquista, onde a liberdade assumia igual cumplicidade.
Quebradas as regras, a descoberta da liberdade, repleta de tensões e ansiedades, deixa agora transparecer algumas incertezas e novas fragilidades. Algumas destas questões são, sem dúvida, genéricas: como ser português neste mundo imenso? De que modo se pode afirmar um pequeno país cujo passado de glória foi há muito esquecido?
Mas as imagens de Luís Palma revelam sobretudo angústias existenciais, embora púdicas, subtilmente expressas na tensão da composição, na densidade dos negros, na incerteza do olhar do observador. Mostram-nos jogos de espelhos enganadores, camas vazias com lençóis amarrotados, crucifixos esquecidos. Sem mostrar nada demasiado explícito, aqui o foco é a ausência e a morte, o exílio e a dor. Ao jogar com a densidade e a profundidade dos negros que muitas vezes invadem o campo fotográfico desta série, Luís Palma consegue criar uma estranha inquietude que nos perturba.
Nalgumas das suas fotografias enigmáticas um detalhe emerge do fundo da escuridão: uma chama, um fragmento de um corpo. Toda uma realidade indecisa que não se revela à primeira vista. Outras são mais directas: não é por acaso que, na sua exposição no Centro de Artes Visuais, em Coimbra, cada uma das duas paredes do fundo da sala foram ocupadas por uma única fotografia de grandes dimensões, muito maior do que as das paredes laterais. Uma delas é uma cabeça de boi esfolada banhada pela escuridão, evocando os tons escuros do Boi Dissecado de Rembrandt, uma imagem que suscita simultaneamente atracção e repugnância: tanto na pintura como na fotografia, a luz parece emanar do próprio animal morto. Em contrapartida, do outro lado da sala, a fotografia menos sombria, mas igualmente trágica, de uma jovem nua com a pele do corpo parcialmente coberta de manchas negras sintomáticas de sarcoma de Kaposi.
Talvez sejam as imagens do interior das casas portuguesas as mais melancólicas: lugares escuros, isolados do mundo exterior, sufocados, fechados, onde os estranhos não são bem-vindos e a tristeza tudo domina. Curiosamente, algumas delas fazem-me lembrar as raras fotografias de Francesca Woodman em que ela não aparece, mas o seu fantasma flutua no seu apartamento algo degradado. Aqui experimentamos a qualidade visual do silêncio, como nos interiores despojados de Vilhelm Hammershøi.
Uma fotografia em particular fascinou-me, como um desdobramento, um paroxismo de desorientação do olhar. Trata-se de uma fotografia de um espelho oval envolto numa moldura de madeira entalhada e ornamentada que a imagem não consegue conter. Assim, vemos a parede onde o espelho está pendurado e a parede que ele reflecte, como um continuum que a moldura interrompe: é uma parede cinzenta ligeiramente rugosa com a tinta que parece estar suja de manchas escuras. Do lado do espelho encontram-se três flores de plástico, provavelmente colocadas dentro de jarras em cima de uma cómoda em frente à cama. Como o vidro do espelho é biselado, a imagem desvia-se do bisel, revelando ecos fragmentários da estrutura da cama, a extremidade esquerda do crucifixo e, em cima, um ponto de luz. Esta provém de um curioso candeeiro situado na cabeceira da cama, em que apenas uma das duas lâmpadas tubulares está acesa, deixando atrás de si um rasto de sombra na parte da parede que forma um ângulo. Por baixo, pousada na mesa-de-cabeceira invisível, aparece uma moldura metálica decorada com volutas que ecoam nos arcos da cama que se intromete na imagem pela esquerda. No interior dessa moldura, encontra-se o retrato oval de um homem, ainda jovem, vestido de fato, talvez o marido falecido ou o filho que partiu para a Guerra Colonial. O retrato é uma abertura para o exterior num mundo de confinamento, como se quisesse fugir desse espaço fechado. Talvez Cristo na Cruz tenha a mesma função para essa mulher devota (por que raio tenho eu a certeza de se tratar do quarto de uma mulher só?). Num duplo acto de devoção, um terço está pendurado por baixo da cruz, juntamente com a pomba do Espírito Santo. Esta fotografia, fechada sobre si mesma, constrói-se a partir de um jogo de repetições e desdobramentos que perturbam o olhar: o espelho, o vidro biselado, o candeeiro, a moldura fotográfica e a cama, o crucifixo e o terço ? um jogo que só é quebrado pela presença-ausência do retrato, sinal de morte ou de exílio. Para mim, esta é a fotografia mais emblemática da melancolia que impregna a série.

© LUÍS PALMA