Luís Palma



Era uma vez um baterista

Era uma vez um baterista

António Cerveira Pinto

O número mágico da série fotográfica "Vinte e Cinco Palavras ou Menos" (2021) liga um tempo histórico ? o da queda de uma ditadura com quarenta e oito anos e uma metodologia artística precisa no caso, a de Iggy Pop, descrita por Luís Palma no texto que escreveu sobre esta série fotográfica: vinte palavras, ou menos, chegam para escrever uma canção.
Numa das quatro fotografias sobressai um blusão negro de couro a descansar num cabide de madeira clara, com gancho metálico, suspenso de um parafuso em L. No plano (aparentemente) mais próximo do nosso olhar, vemos um prato de bateria com pedaços de adesivo cobrindo algumas áreas danificadas. Saltam ainda à vista a fralda coçada de um blusão de ganga azul e um candeeiro de leitura com a luz apagada fixado no que parece ser uma estante. As paredes que envolvem esta cena apertada são de madeira, talvez de faia. O Sol dá forma e cor ao que vemos.
Uma segunda fotografia revela o lugar desta reconstituição: uma diminuta rulote. A imagem deste interior despido de acidentes e de decoração, como se de uma pintura de Vermeer se tratasse, coando a luz que penetra através de uma janela de projetar com moldura de aço, sobre um lugar usado onde milhares de horas de vida foram consumidas (mergulhadas, presumo, em literatura, álcool e drogas), é o protótipo de um recanto teórico da existência que atraiu e desfez ao longo da modernidade a paz burguesa, construtiva e familiar, evocada pelo enigmático pintor de Delft. No canto extremo da Ocidental Europa foi o fim de um ciclo longo de prepotência, cobardia e cegueira, e a promessa em forma de caos de uma utopia em que ninguém realmente podia, sinceramente e em bom juízo, crer. A mesma faia, o veludo verde-azul coçado do sofá e sobretudo a luz ideal que dá forma e corpo a esta fotografia e a esta visão de uma paz reparadora, são também a memória serena de um tempo de tempestade urbana e corporal onde as ideologias da utopia há muito desfeita voltavam a esfumar-se sem remédio nem esperança. Era uma vez um país entregue ao populismo dos cravos, onde a velocidade das noites herdeiras de Chuck Berry, Elvis Presley, The Rolling Stones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Velvet Underground, Patti Smith, Suicide, Miles Davis, MC5, Iggy Pop, Sex Pistols, The Clash e Sonic Youth, entre uma miríade de sons, ritmos e ruídos inesquecíveis, deixava um sulco de verdade que nenhuma velha ideologia (pois novas não havia) ou hipocrisia recorrentes ferramentas de poder uma vez mais regurgitadas conseguiu apagar. Esta imagem, este noema, esta fotografia minimalista que Luís Palma esvaziou da presença humana, sem piscadelas de olho fáceis aos bonzos de serviço, é uma impressão da humanidade num espaço e tempo vividos que a memória do artista reconstrói com paciência, determinação, minúcia, cuidado e extrema sensibilidade moral.
A terceira fotografia de "Vinte e Cinco Palavras ou Menos" fecha o ciclo da representação dessa espécie de cela que fora 'morada' voluntária, estúdio e refúgio holístico de um baterista de bandas de covers. A ressurreição fotográfica deste vórtice, este memorial a um tempo onde o rock, o anarquismo e o situacionismo se cruzaram, repousa inevitavelmente numa lógica reflexiva onde factos e ideias continuam a interagir no interminável pinball das nossas vidas e da História. Para isso serviu e serve simbolicamente o espelho (na fotografia) que mostra em potência o que a objetiva da máquina não pode capturar (mas pode, indiretamente, revelar). O espelho reabre, na sua quietude, o espaço indeterminado, e às vezes infinito, do tempo e da ilusão.
Na quarta fotografia desta série, um prato de bateria mil vezes sussurrado, mil vezes tocado, mil vezes atingido pelo ritmo brutal das baquetas, verdadeiro campo exaurido de amor e luta, é o objeto único, enigmático, que nos é dado ver, uma ferida latente e o cume sublime desta pequena história fotográfica, memória e meditação sobre um tempo de contradições e esperança, mergulhado no espanto de novas ameaças. Da imagem muda e queda deste prato metálico tantas vezes chamado a encher os espaços musicais com a sua energia única nada conseguimos ouvir. Salvo se a memória do rock regressar...
O blusão pendurado no espaço confinado da rulote onde as quatro fotografias foram feitas (escreve Luís Palma) pertence a um baterista português, e evoca um tempo de transição cultural, onde, como duas ondas sucessivas, chocando a segunda contra o refluxo da primeira, a música de intervenção antifascista de algum modo trava o desembarque do radicalismo da esquerda punk que explodia em Inglaterra, nos Estados Unidos e na Austrália. Os Clash estiveram em Cascais em 1981. Foi a única vez que estiveram em Portugal. Havia público, mas não houve oportunidade para uma entrada da onda punk no nosso país, ocupado por revolucionários que preferiram importar tudo de Paris exceto a agenda inovadora de Guy Debord e do situacionismo, onde o Maio de 68 foi beber conteúdo e letras para uma nova utopia urbana. A música de protesto portuguesa tornou-se, depois de Salgueiro Maia chegar ao Terreiro do Paço, uma espécie de utopia vivida e texto oficial do novo regime. A desilusão subsequente, que as meditações exangues de José Mário Branco revelaram, não poderia ser mais elucidativa de um desfecho previsível. As utopias não se realizam! E isso o rock sabe-o desde a nascença. Ambas as ondas que então chocaram no pinball que lhes coube viver acabariam por seguir fados divergentes. Do rescaldo da divergência destas duas utopias ficou uma espécie de vazio e nostalgia que a fotografia de Luís Palma conseguiu, com grande oportunidade, fixar.

© LUÍS PALMA